Lisboa Confinada

Crónica de uma cidade sem vida

Neste projeto, Jorge Gonçalves Silva partilha o cenário que encontrou em Lisboa durante o primeiro confinamento da pandemia por Covid-19, em Abril de 2020, e que foi testemunhado por muito poucos: o de uma cidade que, não estando morta, permaneceu privada de vida. 
Há traços comuns que ressoam nestas fotos: o silêncio indizível que se abateu sobre a cidade, o assombro perante um inimigo letal que roubou a população às suas ruas e às suas vidas e a presença indelével do Tejo, símbolo eterno da energia e da esperança lisboetas. 
Partindo do local, do monumento ou da evocação histórica de cada fotografia, somos convidados a olhar mais atentamente para os detalhes que escapam à nossa atenção quando a cidade pulsa cheia de vida, a refletir sobre os efeitos pessoais e coletivos do confinamento e a reforçar a confiança na capacidade de superação da população de Lisboa e dos portugueses. 
Os textos da Cecília M. Azevedo resultam do convite do fotógrafo para consolidar por palavras o que as imagens muito expressivas já por si revelam. 
(Cecília Azevedo) 

2020 
Exposto em Maio de 2022 na Biblioteca Orlando Ribeiro - Lisboa
Olhos Negreiros. Ilha deserta
Aqui nesta ilha deserta e fria jazem reminiscências de tardes ensolaradas, de sons de vozes e de risos dos que aqui partilharam refrescos e segredos, do movimento contínuo de quem chegou e partiu demorando o olhar na mansidão do Tejo.
Estes são os dias em que é impossível matar o tempo apreciando o sol e o rio com uma bebida em boa companhia. Estes são os dias em que um vírus indomável mata quem assim o fizer.
Às memórias de dias que aqui foram felizes junta-se a esperança de em breve reencontrar esta ilha cheia de alegria vibrante, de brindes sonoros e de abraços apertados, sob o olhar ternamente cúmplice, eternamente penetrante do Poeta que foi Futurista e Tudo.
Lisboa suspensa
E de repente tudo parou. O silêncio abateu-se sobre a cidade suspensa.
A Ribeira das Naus ficou suspensa de vida, despida de gente, cruelmente exposta, com os troncos e as paredes e as pedras todas à mostra.
As gruas suspenderam o seu movimento e assim se mantiveram como braços erguidos suplicando o fim de um castigo mais pesado do que a carga que podiam suportar.
Ficaram suspensos os passeios ribeirinhos e parecia que o Tejo já não corria para o mar.
Parecia irreal que quem mantinha suspensa a vida em Lisboa era um vírus mortal. Tão irreal como se um gato preto, desenhado e suspenso numa laje fria, de repente ganhasse vida e fosse acabar o seu espreguiçar ao sol, junto à margem do rio.
Negras nuvens que a vista alcança
Como é pesado este céu carregado de densas nuvens. O vazio deste local oprime. Lisboa está confinada, subjugada a um vírus que nos corta a respiração, nos dilacera a alma e nos asfixia de morte.
Não quero olhar para trás porque sei que vou encontrar a mesma aridez, a mesma solidão, o mesmo céu carregado. Mas olho para a frente e o que vejo senão nuvens negras e nem uma canoa para cruzar o Tejo?
A ansiedade e a incerteza são mais espessas que as nuvens. E se me morre alguém? E se eu também sucumbir? E quando venceremos a doença?
Mas agora reparo como ali brilha o Tejo. Uma nesga de céu aquece-me o ânimo. Aos poucos a brisa dispersa as nuvens. 
Sim, eu sei! Voltaremos a usufruir do céu de Lisboa e da sua luz incomparável quando estes dias de isolamento não forem mais do que a recordação sombria de um vírus maldito que venceremos juntos.
Quem te guarda, Lisboa
Do alto da colina do Castelo, São Jorge vela por Lisboa.
No Terreiro do Paço, continua a acender-se uma luz vigilante na nau onde jaz São Vicente, Padroeiro, sob as asas protetoras dos corvos.
No centro do terreiro, D. José I, o Reformador, impõe-se na linha da frente da proteção à cidade agora deserta.
Do cimo do arco da Rua Augusta mantêm a guarda os antepassados que inspiram Lisboa a resistir: Viriato, Vasco da Gama, Marquês de Pombal, D. Nuno Álvares Pereira.
Tantos te guardam, Lisboa!
Mas quem te salva?
Quem te salva, Lisboa, da doença, do isolamento, da incerteza, trazidos por esta peste pandémica e negra do século XXI?
Ninguém passa no Rossio
Nem lhe leva o seu olhar
O silêncio pesa, é frio
A morte paira no ar

Ninguém descansa nos bancos
De pedra, parecem féretros
Dos que sucumbem exangues
À violência do vírus

Nem o murmúrio da água
Que corre na fonte antiga
Alivia a dor e a mágoa
Da cidade nua e ferida

O fim é o princípio
A Bertrand continua a ostentar com orgulho a data da sua fundação. A livraria mais antiga do mundo em atividade. Mas que agora está fechada.

Está tão cheia de livros e tão vazia de quem os prove. Fechou a primeira vez por causa do terramoto de 1755. Resistiu e reabriu. Testemunhou a guerra civil, o regicídio, a implantação da República, a Revolução dos Cravos, um violento incêndio que ameaçou destruí-la e assistiu ao renascer das cinzas do Chiado.

Mas agora o Chiado está refém de um inimigo invisível que conseguiu até fechar as portas da Bertrand. É a segunda vez que as suas portas se fecham, desde 1732.

No futuro, a juntar às histórias que aqui se contam e se leem do Aquilino, do Pessoa, do Saramago, da Sophia, do Eça, de tantos outros mais, também na Bertrand se lerá certamente a crónica negra do Coronavírus que em 2020 isolou a cidade de Lisboa e confinou as memórias de todos nós nas sete salas da livraria.

Diz o Manifesto Bertrand que ”o fim é o princípio”. Finda a pandemia, voltaremos para admirar o Chiado com um olhar renovado, novos viajantes voltarão a provar os livros da velha livraria e histórias de esperança e superação serão escritas sobre o princípio das nossas novas vidas.
Lisboa não tem pessoas.
O Chiado não tem pessoas.
Pessoa não tem pessoas.

As pessoas estão em casa, presas por um vírus, roubadas às pessoas da família, do bairro, do trabalho, dos círculos de amigos.

No Chiado há obras por acabar, portas por abrir, compras por fazer, passeios de mãos dadas por dar. Mas não há pessoas.

Em Lisboa as pessoas anseiam por recuperar as suas vidas pelas ruas da cidade, livres da ameaça da doença e da incerteza.

O Chiado anseia pelas pessoas que costumam tirar retratos abraçadas ao Pessoa e pelo som das suas gargalhadas felizes.

Pessoa não tem pessoas.
Nunca esteve tão só, o Pessoa.

O Chiado está vazio da alegria das pessoas.

Lisboa está confinada.
Está tão triste e sem pessoas.
Assim será
Que terrível evento é este que esvazia as cidades, que fecha as portas dos locais de culto e que força ao abandono os transportes urbanos a meio da viagem?

Os portões da sede da minha fé fecharam-se com o estrondo do medo. De joelhos nos degraus de pedra fria, de frente para a cruz que não vejo mas que sei lá dentro, com as mãos uma contra a outra apertadas, procuro as palavras certas para dar sentido às minhas preces: “E livrai-nos do mal, Senhor, deste mal que não sabemos ainda combater e que nos ceifa a vida a cada dia. Ámen.”

Angustiada, fraquejam-me as pernas sem força para subir a calçada e resvalam-me os pés nas pedras negras.

Mas daqui hei de subir às Portas do Sol. E de lá hei de respirar ar puro e recuperar as forças à vista do Tejo. E lá encontrarei a minha gente e daremos abraços apertados e dançaremos até ser noite. Quando não sei. Mas sei que assim será. Um dia…
Viagem suspensa
Horizonte incerto. Viagem suspensa. Vida adiada.
Em Lisboa, à espera da morte do vírus que confina a nossa vida.
Torre e Santos de Belém
A Torre de Belém já não é baluarte de defesa da barra do Tejo. São tão impotentes as 16 bocas de canhão contra o inimigo coroado que hoje nos ataca. Não há fogo de artilharia que nos valha contra este inimigo que não se vê mas que nos destrói de forma implacável.

De nada nos valem as profundas salas da Torre que já foram masmorras, pois o malfeitor que tomou de assalto as nossas vidas não se deixa prender. Mantém-nos, porém, a todos em cativeiro, tal é o seu domínio.

Valha-nos São Vicente, Santo Patrono de Lisboa, a quem a Torre foi dedicada. Que nos proteja a nós, cidadãos de Lisboa e Vale do Tejo, acossados pelo vírus que insiste em perseguir-nos e amedrontar-nos.

Valha-nos Nossa Senhora do Bom Sucesso, Virgem do Restelo, para sempre gravada na pedra da Torre. Valha-nos a nós, navegantes nas águas revoltas da angústia e da incerteza de uma pandemia mortal.

Sem proteção que nos valha, resta-nos o alento de uma prece.
Lisboa mate
Uma doença infeciosa e mortal fechou todas as pontes de Lisboa e encheu de sombra a cidade.

A ponte que nos liga à criatividade e ao conhecimento continua a mostrar-se grandiosa mas está hoje muda e parda, impedida de nos deixar passar pela descoberta e pelo espanto.

Na ponte que liga as duas margens não circulam os habituais veículos que deixam pontilhados de luz sob o sol à sua passagem.

O próprio Tejo, ponte de vida corrente entre a nascente e a foz, parece que já não reluz em tons de azul e prata.

E as nuvens, a meio caminho entre a terra e o céu, parecem baças de tristeza.

Aguardamos ansiosos a reabertura de todas as pontes, por onde voltem a passar, renovados, o ar puro, a luz, a cor, os abraços, a alegria, a esperança, a Vida!
Belém e ninguém
Belém.
O silêncio.
A alameda, os jardins, o mosteiro, as nuvens, o céu.
A pandemia, o vírus, a morte, o medo, o confinamento.
O silêncio.
Belém e ninguém.
Rumo à liberdade
A sombra e o silêncio apoderam-se de Lisboa. E nós, cidadãos, permanecemos em casa, presos por um vírus que nos oprime com grilhões de morte e de medo.

A liberdade é apenas um vislumbre, um pequeno ponto indefinido no horizonte longínquo.
Mas lutamos por sobreviver e não damos tréguas ao opressor. Reinventamo-nos para dar sentido ao rumo impensável que tomaram as nossas vidas. Buscamos força na memória dos afetos e na esperança dos abraços que daremos mais sentidos e apertados que nunca.

Sim, vamos vencer a pandemia e restaurar a nossa liberdade!
Utopia
Tantas experiências e emoções que eu vivi nesta arena que começou por ser o Pavilhão da Utopia!

Aqui aplaudi artistas, desportistas, empresários, comunicadores, políticos e cientistas. Aqui me comovi com expressões artísticas do passado e do presente. Aqui me espantei com o conhecimento tecnológico que molda o nosso futuro global.

A utopia, enquanto magia da descoberta e imaginário do que está para vir, aqui se cumpriu até ao início da pandemia de 2020. Mas agora Lisboa está confinada e o pavilhão permanece encerrado, vazio e silencioso.

Quando acabar a pandemia, que novas experiências aqui virei viver?

Faltará muito tempo para voltar a entrar aqui?

Sentir-me-ei segura por partilhar o espaço com milhares de pessoas desconhecidas?

Entrarei de sorriso descoberto ou uma máscara asfixiante vai deixar aos meus olhos a tarefa de revelar as minhas emoções?

Emoções pós-pandemia. Por enquanto, uma utopia.
Destino
Tantos destinos na cidade e não poder escolher nenhum.
Tantas ruas para andar e não poder percorrê-las.
Depois da pandemia que mudou o rumo das nossas vidas, que direção tomar?
Até onde iremos?
E com quem?
A que velocidade?
Voltarão a travar-nos?
Tantas ruas… Que destino…?
Devastação
A Lisboa devastada de 1755 caiu em ruínas. Um terramoto violento, estrondoso, catastrófico espalhou a morte pelas sete colinas. Sob o comando do Marquês de Pombal, milhares de homens e mulheres vieram para a rua, reergueram a cidade e devolveram-lhe a vida.

A Lisboa confinada de 2020 está vazia. O que nos mata é um vírus microscópico, silencioso e traiçoeiro. Por ordem das autoridades, permanecemos em casa, isolados de tudo e de todos para fugirmos à morte.

Hoje, Lisboa é uma cidade fantasma onde só corre o vento que empurra as bandeiras na mesma direção dos olhos sem vida do Marquês. A cidade enfrenta nova tragédia mas desta vez permanece intacta.

E nós tomados de angústia, devastados pela solidão.

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